sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Uma espécie de recensão crítica


Memória de um Inconformista – Crónicas
Gonzalo Torrente Ballester
[Tradução e notas de António Gonçalves]
Âmbar, Porto, 2006,
467 pp.







Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999) é considerado um dos principais intelectuais espanhóis do século XX, cuja obra conta com cerca de meia centena de livros repartidos pelo romance, teatro, ensaio e jornalismo. Qualificado e premiado como um dos melhores escritores espanhóis - o “senhor das palavras”, também foi jornalista e, tal como a certa altura se intitulou, sobretudo, “um excelente professor”.

O seu inconformismo e espírito crítico face aos acontecimentos do seu tempo, nomeadamente, em relação ao regime político, tornaram-no alvo da censura oficial do aparelho franquista em todos estes ofícios. Em 1962, por exemplo, esta postura custou-lhe não só a indiferença da crítica para com a publicação da última parte da sua trilogia Os Prazeres e as Sombras, mas também perdeu o seu lugar de professor na Escola de Guerra Naval e o seu espaço na imprensa e rádio. Somente dois anos depois conseguiu o reingresso no ensino e recuperar o seu espaço na imprensa escrita, altura em que inaugurou a sua presença no jornal Faro de Vigo numa coluna intitulada “A modo”.

Em 1997, César António Molina compilou em Memória de um Inconformista grande parte dos artigos aí publicados, entre Julho de 1964 e o início de 1967, e cuja tradução chegou em 2006 ao mercado português. Esta obra, para além de nos oferecer a oportunidade de (re)visitar o estilo e as ideias de Ballester, tem o mérito de nos fazer recuar até aos anos 60 e de permitir conhecer, recordar e reflectir sobre os temas, as polémicas e os protagonistas que em muito contribuíram para a realidade que vivemos actualmente.

Nestes artigos, sem uma dimensão nem periodicidade regular e pautados por um estilo errante entre a literatura e o comentário jornalístico, o seu autor debruça-se sobre as mais diversas temáticas: sociais; políticas; religiosas; culturais; e etc.. Atento à realidade e aos acontecimentos do seu tempo escreve, sempre sem pudor e sem medo do juízo apaixonado ou do erro pessoal, sobre todos os assuntos, quer os que estuda e conhece, como aqueles em que se sente mais inseguro.

A única regularidade transversal aos diversos artigos é o estilo e os valores que defende. Em cada artigo Ballester revela-se mais do que um homem à frente do seu tempo, ele demonstra ser alguém profundamente comprometido com todas as circunstâncias do época em que viveu. Talvez consciente disto, numa crónica alusiva ao seu primeiro ano como cronista do Faro de Vigo, interroga-se: “Não posso deixar de me assustar e de perguntar a mim próprio se em tanta prosa haverá algo de válido, ou de autêntico, ou de permanente (…)”.

Volvidos 40 anos, o leitor poderá responder seguramente que sim. Não obstante algumas conclusões que se revelaram falhadas e o facto das personagens e os contornos dos assuntos serem presentemente outros, a sua prosa, a atitude e os valores que defendeu mantêm uma surpreendente actualidade. Hoje, como antes, é necessário manter o inconformismo e o espírito crítico construtivista típico em Ballester perante a permanência dos mesmos problemas de sempre: guerras; subsistência de regimes não-democráticos; discriminação e segregação racial e sexual; a falta de renovação da Igreja e dos seus eclesiásticos; a desvalorização da cultura e do ensino; o alargamento da sociedade de consumo; os erros da politica externa dos EUA; o desrespeito pelas diferenças; e a urgência de convivência pacifica.

O seu inconformismo crítico face a estes e outros problemas resultou em numerosas cartas ao director do jornal e em várias contestações públicas. No entanto, sempre se revelou um espírito livre e obstinado, e várias vezes o sublinhou cintando o verso de Quevedo “Não me calo...”.

A publicação desta obra é a prova de que ainda não se calou.

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