quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Recensão com a crítica possível

(04/03/2010)


CAIM
José Saramago
Caminho, Alfragide, 2009,
181 pp.







Não percamos muito tempo nem adjectivos com a apresentação de José Saramago, a sua trajectória biográfica é suficientemente publicada e pública. Nasceu ribatejano, tornou-se lisboeta sem nunca abandonar a sua proveniência e, 71 anos depois do seu nascimento, a sua inscrição identitária alargou-se a Espanha. Mais tarde, o cruzamento entre a sua pátria e mátria pariu nele uma jangada de pedra e com ela foi navegando pelo mundo...

Com estudos ao nível do secundário (liceal e técnico), abandonou a escola precocemente por motivos económicos e iniciou a escola da vida como serralheiro mecânico. Daí em diante passou por muitas outras profissões (desenhador, funcionário da saúde e da providência social, tradutor, editor e jornalista), até que a partir de 1976 passou a viver da sua criação literária, actividade através da qual obteve o Prémio Nobel da Literatura (1998). A sua obra conta com cerca de 35 livros, repartidos pelo romance, teatro, contos, poesia, crónicas e memórias.

O meu encontro com a criação literária de José Saramago calhou a meio da desregrada adolescência, quando descobri lá por casa, entre algum lixo do Círculo de Leitores, o então polémico O Envagelho Segundo Jesus Cristo. Entusiasmado, seguiram-se outros livros, dos quais destaco A Jangada de Pedra, Ensaio sobre a Cegueira e porque não também Os Poemas Possíveis.

Debrucemo-nos então sobre o livro que me trouxe novamente à companhia de Saramago: Caim. Talvez pela polémica em torno das declarações do escritor e pelos prontos contra-argumentos que suscitou [e que funcionaram como publicidade gratuita], decidi voltar a partilhar as noites de alguns dias com este autor.

Depois de lido, a conclusão é que Caim prometia mais do que aquilo que revelou. O estilo e o ritmo de Saramago está presente e a história está bem arquitectada, porém, parece-me que escasseia algum do fulgor de outros livros e que as personagens estão pouco receptivas a uma interacção com o leitor, afigurando-se psicológica e emotivamente (quase) impenetráveis, fechadas em si e na própria história.

No que se refere à substância do livro, é de referir que as estórias que fazem a história deste livro são conhecidas há muitas gerações, sendo que a grande inovação é a perspectiva com que estas são narradas. Ao longo da narrativa, o personagem principal, Caim, intercala entre vários presentes, os quais correspondem a diferentes episódios/cenários bíblicos: Torre de Babel; Sodoma e Gomorra; Jericó; Monte Sinai; o dia em que Deus parou o Sol; e Arca de Noé, entre outros.

Contudo, ao contrário da narrativa bíblica, neste livro, Saramago torna Caim uma espécie de testemunha das atrocidades de Deus. O leitor assiste através do olhar peregrino de Caim a um conjunto de acções que revelam a má fé (expressão curiosa para falar do Senhor) e a personalidade egocêntrica e vilã desse Deus.

Em Caim Saramago não pretende matar Deus, essa é uma tarefa iniciada por alguns filósofos e deve permanecer nesse âmbito. Aqui, Saramago mais não faz do que malhar como um boxeur muito superior ao seu adversário, um virtuoso que se diverte a humilhar e a massacrar um adversário cheio de limitações técnicas e até falta de jeito para a actividade que insiste em prosseguir.

Aos meus olhos de leitor, parece-me nítido o prazer com que José Saramago procurou os adjectivos mais indicados para insultar Deus. Quando não recorre à simplicidade da adjectivação, esforça-se para traçar acontecimentos que colocam Deus a jeito de revelar a sua própria percepção de Deus e que compelem o leitor chegar aos adjectivos que pretende sem nunca os enunciar, por exemplo: incompetente; negligente; ausente; arrogante; traiçoeiro; rancoroso; cruel; invejoso; ciumento; injusto; vingativo; mau; mentiroso; louco e insensível. No entanto, não se inibe de lhe chamar com todas as letras “filho da puta” (p. 82).

Além da adjectivação, Saramago também coloca todos os nomes com letra pequena, incluindo o do Senhor que é despromovido a simples senhor. Do que me recordo de ler nos seus outros livros, tal despromoção nunca esteve presente, nem mesmo n’ O Envagelho Segundo Jesus Cristo.

Pontualmente, o boxeur Saramago, nos intervalos dos rounds em que se confronta com Deus, também demonstra o seu desprezo pelo Staff que compõe a equipa de Deus, agredindo e insultando-os, em particular, os Judeus (“falam demasiado” (p. 105); “à mínima derrota os judeus perdem a vontade de lutar” (p. 118)).

Em jeito de crítica negativa, considero que grande parte das notas do autor são despropositadas e, em alguns momentos, quebram a dinâmica da obra. Mais grave, em vez de complementares, o contraste entre a narrativa e as notas, parecem criar dois livros distintos num só, sendo que o que corresponde às notas do autor tem muito menos qualidade do que aquele que é desenvolvido pelo narrador.

Como positivo, destaco o facto de que Saramago mantém uma qualidade que me parece transversal na sua criação literária, isto é, a capacidade de provocar erecções... quer nas suas personagens como nos leitores. No que diz respeito aos leitores, reservo-as a cada um deles. No que se refere às dos personagens, recordo as sublimes erecções com que presenteia Abel e o próprio velho Abrão.

Por outro lado, ao contrário de outros, não considero que Caim se resuma a um manifesto contra Deus. Saramago vai bem mais longe, pois, a partir da caricatura de Deus, crítica e traça o que tem sido a história da humanidade e, ao mesmo tempo, faz um retrato do Homem actual. Caim não testemunha só as atrocidades de Deus, também assiste à barbaridade entre os seres humanos: violência, assassínios, corrupção, traições...

Assim, ao que José Saramago escreve (“A historia dos homens é a história dos seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós, nem nós o entendemos a ele” (p. 91)), acrescento: a historia dos homens também é a história dos desentendimentos entre si, continuamos sem nos entender.

sábado, 11 de setembro de 2010

Corredor do Poder... ou Academia dos Tretas



Nas quintas-feiras à noite podemos ver na RTP1 o Corredor do Poder. O título do programa é bastante feliz porque o que podemos assistir é ao debate político entre cinco corredores do e para o poder. No entanto, também o podemos entender de outra forma, ou seja, como uma espécie de amostra desse corredor. Durante o programa visionamos em directo a exibição acrobática de alguns jovens políticos conhecidos (a maioria com cerca de 40 anos), os quais funcionam como protótipos dos políticos que fazem parte do corredor do poder.

Se fosse pintor surrealista e um dia pintasse um quadro sobre o corredor do poder, desenharia na diagonal um comprido corredor de paredes negras, sem luz e ao longo desse corredor vários cabides com majestosos fatos pendurados. É a imagem que tenho desse corredor, uma sucessão de lugares, uns preenchidos, outros temporariamente vagos, à espera de corpos desabitados de personalidade e ideias próprias, formatados pelas medidas pré-definidas das ideologias frívolas dos partidos que representam. Neste sentido, os protagonistas do Corredor do Poder têm sido esses corpos que preenchem aqueles fatos vazios do nosso corredor do poder.

Ainda que o título seja feliz, proponho um nome alternativo mais adequado: Academia dos Tretas. Academia dos Tretas porque todas as quintas podemos assistir a uma espécie de conversa da treta sem humor e inconsequente, pautada por cinismo e palavras e gestos amestrados. Semanalmente, estes jovens políticos conhecidos ocupam o escuro do corredor e, envergando os fatos outrora vazios, fazem o seu treino para ascensão no interior dos seus partidos.

Os debates na Academia dos Tretas permitem perceber que as suas maiores preocupações não são a resolução dos problemas que afectam a sociedade nem a persecução do bem comum. Pelo contrário, o seu principal objectivo é elevar-se no seio dos seus partidos (carreirismo político), recorrendo a argumentos vazios, a exemplos cuidadosamente engendrados e à ofensa gratuita. Simultaneamente, decalcam os gestos e as palavras dos seus correligionários mais velhos e reproduzem até exaustam o sectarismo ideológico. Essa elevação intra-partidária é construída à custa do jogo sujo contra os seus concorrentes, à semelhança do corredor dos 100 ou dos 200 metros que tenta puxar ou derrubar os adversários das pistas do lado e, em alguns casos, até como o corredor de estafetas que propositadamente atrasa a passagem ou deixa cair o testemunho quando se aproxima do membro da sua própria equipa. Os fins continuam a justificar sempre os meios...

Uma coisa é certa, pelo que se vê na Academia dos Tretas, a política portuguesa não evoluirá positivamente nas próximas décadas. A nova geração de políticos, além de plagiar aqueles que são os maus exemplos dos políticos mais velhos, ainda tem contra si o facto de desconhecer a originalidade e o engajamento social de alguns dos seus antecessores.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Retórica dos alienados



Estão todos loucos, isto é, abstraídos dos processos socioeconómicos... ou então são imbecis de todo.

Foi o que pensei quando hoje vi o excelentíssimo ministro dos Negócios Estrangeiros Luís Amado interromper a sua preenchida agenda em Bruxelas para chegar à brilhante conclusão: a polémica em torno de Carlos Queiroz “afecta a imagem do país”.

O que se passa na cachimónia do nosso senhor ministro?

Seguramente acredita que temos uma taxa de desemprego abaixo da média europeia e níveis de educação superiores. Ao mesmo tempo, deve ter provas evidentes de que possuímos uma Justiça e Saúde espectacular... Pois, o que nos trama mesmo são estas controvérsias em torno do futebol.

O curioso é que estes ministros passam dias a esquivar-se aos jornalistas quando as estatísticas socioeconómicas são negativas e as comparações com outros países são pouco favoráveis. Nessas alturas, esforçam-se por desvalorizar os números, esquecem as pessoas que dão corpo a essas estatísticas e parecem estar literalmente nas tintas para a “imagem do país”.

É certo que o ministro Luís Amado ainda se resguardou de eventuais críticas acrescentando: “Tudo o que se passa de mau em Portugal afecta a imagem do país (...)”.

Contudo, na verdade não me recordo de o ouvir dissertar sobre nenhum dos outros problemas que afectam a imagem do país.


O que seria positivo para essa imagem era que a classe politica e os cidadãos em geral se inquietassem menos com os casos futebolísticos e que se preocupassem mais com os cancros socioeconómicos que aniquilam este esboço de país.