terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Triplicações do pretérito no presente

Dalí, The Persistence of Memory , 1931. Oil on canvas, 24 x 33 cm. The Museum of Modern Art, New York


São três as memórias
Nódoas de diferentes pretéritos num mesmo presente
Distorcidas pelos vincos das formas onde jazem derretidas

Que pequenas são estas memórias
Que se distinguem nas aparências
nas tonalidades das cores
nas melodias e aromas
Que se singularizam pelos lugares em que estão esculpidas

São pequenas, porém
eliminam todos os outros elementos do momento
O momento que não é o presente destas memórias
é apenas o cenário onde essas assumem o papel principal

São memórias contraditórias aparentemente reconciliadas
Pela contiguidade
Porque cada uma
faz esquecer o incesto entre o mar e a montanha
Porque todas
se encurvam em organismos
decapitados pelo peso das lembranças
secos pela fricção do suceder do tempo

Neste presente
Sob o céu que hesita na cor com que se pinta
Sobre a terra negra e obstinadamente húmida
Nesse intervalo
Brota a memória primordial
em cima do que resta de um animal de pêlo branco puro
como num pretérito original era a inocência do seu pintor

Memória seguinte
A cor menos inocente
confessa a insistência no erro
Revela-se numa oscilação entre a natureza e mecanismos artificiais
entre o vermelho e uma outra cor,
que não encontra tradução em palavras

Ao lado,
Numa árvore genealógica mutilada
sem raízes
e de um ramo só
como que pintada por um aprendiz na arte da poda
Estende-se outra memória
insistindo na aproximação às mais antigas
Dobrada pela indiferença das outras

Ilusão óptica
Jogo de espelhos
Estas memórias lutam pelo afastamento entre si
fogem à terra rastejando em direcção ao céu

Esta triplicação de memórias no presente
nesta tela
Esboça uma vã tentativa de redenção
A última hipótese do pintor narrar as memórias à sua maneira
para parir crença na sua história
para perpetuar uma outra versão dos pretéritos

Este é o momento do pintor
De reconciliação interior
A terapia contra a persistência da verdade

O que ele não sabe é que...
Não se exila as memórias
com quadros fechados em museus
nem se as prende com pontos finais
Não se reinventa as memórias
alterando-lhes as cores e as formas
nem usando sinónimos ou antónimos

As memorias perseguem-nos
Estão cravadas na carne
e quando não houver carne
Ficam a pairar por aí
Em jeito de emboscada
à espera que a alguém as escute e reproduza
à espera de recarnificação
À espera de ti!

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