Dalí, Rapariga de Pé à janela, 1925
Óleo sobre tela, 108 x 77 cm
O peito contraindo-se na tentativa de tornar a carne em pedra
no inútil esforço de controlar o pulsar do coração
Os pulmões insistindo na cristalização da respiração
investem na inibição de fugas de suspiros
O rosto moreno tornando-se cada vez mais rosado
dissolve-se em gotículas de suor e lágrimas
Do interior do útero vem deslizando um rubi
O corpo resistindo fecha-se em si, impõe-se erguendo-se
A menina caminha em direcção a si
persegue-se, vacila na incerteza de se aclamar mulher
A janela é aberta
Para lá do seu curto horizonte revela-se a mulher
Deste lado fica a menina
Entre a menina e a mulher a mesma melancolia
Para além das duas a mesma solidão
O cabelo continua preto como sempre...
De pé à janela a sua mente vagueia
Debruçada em direcção ao longínquo
imagina a sensação de inaugurar o azul
de se molhar, de voar, de romper e sujar as roupas de menina
No chão um pé prende-a neste quarto que já não é seu
comprimindo-a num corpo de menina que desconhece
abreviando-a numa infância caducada
O outro pé impulsiona-a para o inevitável
A menina desapareceu na mulher que lá vai
em busca de azuis onde expirar a sua tristeza
ávida de outras janelas e ombros onde partilhar o seu silêncio
desejosa de se confidenciar noutros corpos
No quarto vazio restam as memórias dos azuis no feminino
Na janela fechada pelo vento fica a inscrição do Adeus
Cada instante de ausência abotoa silêncio, carência e insónias... Nesses momentos este será o Espaço onde a ausência será traduzida em fragmentos de palavras (Letra), a Palavra em Texto e este em interlúdios que preenchem os vácuos que pontuam a grande composição que é a vida.
domingo, 31 de janeiro de 2010
sábado, 23 de janeiro de 2010
ÚLTIMA HORA: Novo Director Desportivo do Sporting C. P.
Depois da demissão de Ricardo Sá Pinto, os dirigentes leoninos contrataram Michael Gerard Tyson, mais conhecido por Iron Mike, The Baddest Man on the Planet.
O novo director desportivo do Sporting irá iniciar funções na próxima segunda-feira.
Segundo José Eduardo Bettencourt, Myke Tyson tem o perfil adequado e um curriculum que fala por si:
Idade - 43 anos
Categoria - Peso-Pesado
Nacionalidade - Americana
Boxing Record
Lutas - 58
Vitórias - 50
Vitórias por KO - 44
Derrotas - 6
Empates - 0
Desistências - 2
A razão da força em vez da força da razão
http://desporto.sapo.pt/multimedia/fotos/cartoon/
A contratação de Ricardo Sá Pinto para a função de director desportivo do Sporting, além de ser um erro de casting, demonstrou a displicência dos dirigentes leoninos.
José Eduardo Bettencourt não teve em consideração a delicada situação em que se encontrava o seu clube e agravou-a ao resolver contratar uma pessoa com um perfil demasiado emotivo, em vez de alguém capaz de dirigir o futebol de forma mais racional.
Na altura da contratação de Sá Pinto, pareceu-me que o seu nome era demasiado consensual e que não foi calculado o risco de o colocar como director de uma estrutura algo periclitante.
Como é que Sá Pinto poderia exercer uma autoridade reconhecida pelos jogadores do Sporting, quando ele próprio enquanto jogador agrediu o seleccionador nacional (Artur Jorge) e envolveu-se em cenas de pancadaria com outros elementos da equipa técnica (Rui Águas)? Como é que alguém que é caracterizado pelo seu temperamento intempestivo poderia ter êxito na tarefa de negociar a resolução de conflitos e gerir relações interpessoais no seio de um grupo fragilizado?
Concordo que o Sá Pinto seja um simbolo do clube, lugar que conquistou pela forma como se entregava nos jogos e pelo seu temperamento e carisma. Ao mesmo tempo, consta que fez um mestrado em marketing e desporto, uma licenciatura em comunicação empresarial e um curso de direcção desportiva.
Contudo, a noticia que relata o confronto físico entre Sá Pinto e Liedson, após o último jogo do Sporting, demonstra que os conhecimentos e as técnicas que aprendeu na sala de aula não mudaram o seu temperamento e comprova a tese de que nunca esteve apto para desempenhar funções como director desportivo de um clube profissional.
O Sporting precisava de um relojoeiro competente para acertar um relógio muito frágil, alguém que conhecesse bem o seu mecanismo de funcionamento e que fosse hábil no uso minucioso das pinças. No entanto, contratou alguém que o tentou arranjar com o vigor do martelo. O resultado foi o estrago que se adivinhava.
A contratação de Ricardo Sá Pinto para a função de director desportivo do Sporting, além de ser um erro de casting, demonstrou a displicência dos dirigentes leoninos.
José Eduardo Bettencourt não teve em consideração a delicada situação em que se encontrava o seu clube e agravou-a ao resolver contratar uma pessoa com um perfil demasiado emotivo, em vez de alguém capaz de dirigir o futebol de forma mais racional.
Na altura da contratação de Sá Pinto, pareceu-me que o seu nome era demasiado consensual e que não foi calculado o risco de o colocar como director de uma estrutura algo periclitante.
Como é que Sá Pinto poderia exercer uma autoridade reconhecida pelos jogadores do Sporting, quando ele próprio enquanto jogador agrediu o seleccionador nacional (Artur Jorge) e envolveu-se em cenas de pancadaria com outros elementos da equipa técnica (Rui Águas)? Como é que alguém que é caracterizado pelo seu temperamento intempestivo poderia ter êxito na tarefa de negociar a resolução de conflitos e gerir relações interpessoais no seio de um grupo fragilizado?
Concordo que o Sá Pinto seja um simbolo do clube, lugar que conquistou pela forma como se entregava nos jogos e pelo seu temperamento e carisma. Ao mesmo tempo, consta que fez um mestrado em marketing e desporto, uma licenciatura em comunicação empresarial e um curso de direcção desportiva.
Contudo, a noticia que relata o confronto físico entre Sá Pinto e Liedson, após o último jogo do Sporting, demonstra que os conhecimentos e as técnicas que aprendeu na sala de aula não mudaram o seu temperamento e comprova a tese de que nunca esteve apto para desempenhar funções como director desportivo de um clube profissional.
O Sporting precisava de um relojoeiro competente para acertar um relógio muito frágil, alguém que conhecesse bem o seu mecanismo de funcionamento e que fosse hábil no uso minucioso das pinças. No entanto, contratou alguém que o tentou arranjar com o vigor do martelo. O resultado foi o estrago que se adivinhava.
sexta-feira, 22 de janeiro de 2010
Dever, tradição e justiça? E o mérito?
Pedro Miguel de Santana Lopes, o único ex-primeiro ministro que ainda não tinha sido honorificado com a Grã-Cruz da Ordem de Cristo foi, finalmente, condecorado pelo Presidente da República. A cerimónia foi curta e com poucos convidados, à semelhança do que foi o seu mandato como chefe do Governo.
O argumento de Aníbal Cavaco Silva foi “o dever e a tradição de condecorar aqueles que desempenharam as altas e completas funções” no Estado. Acrescentando: “Cumpro a regra que sempre foi seguida” e “cumpre-se aqui um acto de justiça”.
O principio subjacente neste argumento é o da igualdade, ou seja, uma obrigação moral de atribuir a este ex-primeiro ministro a insígnia que todos os seus antecessores tiveram direito. Direito?
Neste caso, o direito à condecoração parece ser sinonimo de dever, tradição e, surpreenda-se, decorre de uma regra que nunca se infringiu. Esta condecoração não serve para distinguir uma pessoa que se destacou no exercício da função. Pelo contrário, funciona como uma espécie de certificado de participação que se atribui a todos os que desempenharam esse cargo, independentemente dos resultados atingidos e do seu mérito.
Aníbal Cavaco Silva também refere que a atribuição desta condecoração representa um acto de justiça. Justiça?
Em primeiro lugar, Santana Lopes não chegou a chefe do Governo através de eleições, herdo-o. Mas não sejamos tão estritos nesta coisa da democracia.
Ainda que não tenha sido eleito, podia ter exercido as funções que herdou com mérito. Poder podia, porém, não foi o que se verificou. Nos cerca de seis meses que se manteve no cargo, foi protagonista das maiores trapalhadas da democracia portuguesa. O seu desempenho como chefe do Governo recorda as peripécias do mais conhecido personagem de Charlie Chaplin, Charlot. Esse desempenho terminou com a dissolução da assembleia da república e com Santana Lopes, obviamente, demitido. Onde está o mérito e o “alto relevo” das funções que exerceu?
Enfim, mais do que aquilo que se realizou no exercício de determinado cargo, o que parece ser importante para obter este tipo de condecorações é passar pelo cargo em si.
domingo, 17 de janeiro de 2010
Haiti: Laboratório de labirintos de sofrimento
Injured people sit along a road the day after the earthquake struck Port-au-Prince, Haiti, (AP Photo/Jorge Cruz) in http://www.kyw1060.com/pages/6107326.php, acedido em 17/10/2010
Do interior da mãe terra eclodiu uma energia
uma força que lhe rasgou o útero forjado em rocha
O corpo tremeu-lhe ao compasso de um curto gemido
O gemido e a tremura cessaram
As formas da mãe terra retornaram ao que sempre foram
O corpo e o útero continuaram rochosos como antes
Seus olhos cerram-se num silêncio oportunamente inventado
como que harmonizando-se consigo mesma
À boca escapa-lhe um sorriso ausente de dentes
de quem absolve-se de um crime que voltou a engendrar
Esta absolvição inaugura um novo laboratório
onde converte-se a inocência em culpa e castigo
Aí são ministradas elevadas doses de sofrimento
Interrompendo as rotinas dos da vida flutuante
Condenando-os à reclusão em labirintos sem chave
separados uns dos outros, amputados de si
Aí é experimentada a resistência da humanidade
medida, pesada, calculada e reanalisada com muito rigor
No laboratório de labirintos de sofrimento
Os gemidos de dor somam-se em cada boca
múltiplicam-se pelas bocas, olhos, gestos e expressões
O que resta de vida não é suficiente para a subtrair
Essa dor sobrepõe-se a qualquer intuição de revolta
Na curva dos limites do sofrimento
Cansados, os corpos declaram-se vencidos
Convertem-se em labirintos individualizados
que se reflectem em sombras de vestígios de humanidade
Esgotados, os seus corpos continuam de carne como antes
Agora com menos carne, menos sangue, menos ossos
Amanhã contendo menos indícios de dor
Em cada dia passado, mais perto de ser sombras
mais longe de voltarem a ser carne
cada vez mais encerrados na impossibilidade de regeneração
Cada vez mais encurralados nesses seus labirintos
Por baixo do que resta da carne, no local de sempre
Os úteros também subsistem
Mas as vidas dos que neles nasceram tornaram-se memórias
os seus corpos apodrecem como sombras em sacos amnióticos de pedras e lama
E os úteros que os geraram tornaram-se caixas de ressonância de morte
meticulosamente afinadas por diapasões viciados
Os úteros continuarão a existir
porém, a administração exagerada de sofrimento
tornou-os incapazes de voltar a gerar vida
e aqueles que nunca a geraram fizeram-se inférteis
Neste laboratório,
A vida gera-se debaixo do chão
De lá irrompem mãos, braços, cabeças
vêm hinos de ajuda
Embaixo do chão ficarão se ninguém os ouvir
se ninguém lhes emprestar pelo menos uma mão
As vidas permanecem flutuantes
com mais intensidade do que durante o breve tremor da mãe
Um momento que se tornou eterno
Um momento pelo qual se condenam,
nos olhos uma lágrima
As memórias tornam-se lápides que imortalizam
Olhares prostrados em labirintos de sofrimento
Corpos dobrados pelo cansaço
Gestos de quem não esconde mais uma derrota
Bocas que pronunciam o vazio das palavras
Pernas que mais do que procurar uma saída
parecem querer andar para trás
regressar ao ponto de partida desse labirinto
sair deste laboratório
Se pudesse trocaria...
O teu pelo meu lugar
Os teus pelos meus medos
O teu presente pelo meu futuro
Se houvesse magistratura divina...
O teu sangue continuaria a correr-te nas veias
e seria o meu misturado no pó
Se… Se... e Se
Como os ses parecem não fazer sentido nesta realidade do impossível
Troco a tua dor por esta minha raiva
Troco o teu silêncio por este meu grito
Agora,
Empresta-me a tua dignidade apenas por um instante
Do interior da mãe terra eclodiu uma energia
uma força que lhe rasgou o útero forjado em rocha
O corpo tremeu-lhe ao compasso de um curto gemido
O gemido e a tremura cessaram
As formas da mãe terra retornaram ao que sempre foram
O corpo e o útero continuaram rochosos como antes
Seus olhos cerram-se num silêncio oportunamente inventado
como que harmonizando-se consigo mesma
À boca escapa-lhe um sorriso ausente de dentes
de quem absolve-se de um crime que voltou a engendrar
Esta absolvição inaugura um novo laboratório
onde converte-se a inocência em culpa e castigo
Aí são ministradas elevadas doses de sofrimento
Interrompendo as rotinas dos da vida flutuante
Condenando-os à reclusão em labirintos sem chave
separados uns dos outros, amputados de si
Aí é experimentada a resistência da humanidade
medida, pesada, calculada e reanalisada com muito rigor
No laboratório de labirintos de sofrimento
Os gemidos de dor somam-se em cada boca
múltiplicam-se pelas bocas, olhos, gestos e expressões
O que resta de vida não é suficiente para a subtrair
Essa dor sobrepõe-se a qualquer intuição de revolta
Na curva dos limites do sofrimento
Cansados, os corpos declaram-se vencidos
Convertem-se em labirintos individualizados
que se reflectem em sombras de vestígios de humanidade
Esgotados, os seus corpos continuam de carne como antes
Agora com menos carne, menos sangue, menos ossos
Amanhã contendo menos indícios de dor
Em cada dia passado, mais perto de ser sombras
mais longe de voltarem a ser carne
cada vez mais encerrados na impossibilidade de regeneração
Cada vez mais encurralados nesses seus labirintos
Por baixo do que resta da carne, no local de sempre
Os úteros também subsistem
Mas as vidas dos que neles nasceram tornaram-se memórias
os seus corpos apodrecem como sombras em sacos amnióticos de pedras e lama
E os úteros que os geraram tornaram-se caixas de ressonância de morte
meticulosamente afinadas por diapasões viciados
Os úteros continuarão a existir
porém, a administração exagerada de sofrimento
tornou-os incapazes de voltar a gerar vida
e aqueles que nunca a geraram fizeram-se inférteis
Neste laboratório,
A vida gera-se debaixo do chão
De lá irrompem mãos, braços, cabeças
vêm hinos de ajuda
Embaixo do chão ficarão se ninguém os ouvir
se ninguém lhes emprestar pelo menos uma mão
As vidas permanecem flutuantes
com mais intensidade do que durante o breve tremor da mãe
Um momento que se tornou eterno
Um momento pelo qual se condenam,
nos olhos uma lágrima
As memórias tornam-se lápides que imortalizam
Olhares prostrados em labirintos de sofrimento
Corpos dobrados pelo cansaço
Gestos de quem não esconde mais uma derrota
Bocas que pronunciam o vazio das palavras
Pernas que mais do que procurar uma saída
parecem querer andar para trás
regressar ao ponto de partida desse labirinto
sair deste laboratório
Se pudesse trocaria...
O teu pelo meu lugar
Os teus pelos meus medos
O teu presente pelo meu futuro
Se houvesse magistratura divina...
O teu sangue continuaria a correr-te nas veias
e seria o meu misturado no pó
Se… Se... e Se
Como os ses parecem não fazer sentido nesta realidade do impossível
Troco a tua dor por esta minha raiva
Troco o teu silêncio por este meu grito
Agora,
Empresta-me a tua dignidade apenas por um instante
terça-feira, 12 de janeiro de 2010
Triplicações do pretérito no presente
Dalí, The Persistence of Memory , 1931. Oil on canvas, 24 x 33 cm. The Museum of Modern Art, New York
São três as memórias
Nódoas de diferentes pretéritos num mesmo presente
Distorcidas pelos vincos das formas onde jazem derretidas
Que pequenas são estas memórias
Que se distinguem nas aparências
nas tonalidades das cores
nas melodias e aromas
Que se singularizam pelos lugares em que estão esculpidas
São pequenas, porém
eliminam todos os outros elementos do momento
O momento que não é o presente destas memórias
é apenas o cenário onde essas assumem o papel principal
São memórias contraditórias aparentemente reconciliadas
Pela contiguidade
Porque cada uma
faz esquecer o incesto entre o mar e a montanha
Porque todas
se encurvam em organismos
decapitados pelo peso das lembranças
secos pela fricção do suceder do tempo
Neste presente
Sob o céu que hesita na cor com que se pinta
Sobre a terra negra e obstinadamente húmida
Nesse intervalo
Brota a memória primordial
em cima do que resta de um animal de pêlo branco puro
como num pretérito original era a inocência do seu pintor
Memória seguinte
A cor menos inocente
confessa a insistência no erro
Revela-se numa oscilação entre a natureza e mecanismos artificiais
entre o vermelho e uma outra cor,
que não encontra tradução em palavras
Ao lado,
Numa árvore genealógica mutilada
sem raízes
e de um ramo só
como que pintada por um aprendiz na arte da poda
Estende-se outra memória
insistindo na aproximação às mais antigas
Dobrada pela indiferença das outras
Ilusão óptica
Jogo de espelhos
Estas memórias lutam pelo afastamento entre si
fogem à terra rastejando em direcção ao céu
Esta triplicação de memórias no presente
nesta tela
Esboça uma vã tentativa de redenção
A última hipótese do pintor narrar as memórias à sua maneira
para parir crença na sua história
para perpetuar uma outra versão dos pretéritos
Este é o momento do pintor
De reconciliação interior
A terapia contra a persistência da verdade
O que ele não sabe é que...
Não se exila as memórias
com quadros fechados em museus
nem se as prende com pontos finais
Não se reinventa as memórias
alterando-lhes as cores e as formas
nem usando sinónimos ou antónimos
As memorias perseguem-nos
Estão cravadas na carne
e quando não houver carne
Ficam a pairar por aí
Em jeito de emboscada
à espera que a alguém as escute e reproduza
à espera de recarnificação
À espera de ti!
São três as memórias
Nódoas de diferentes pretéritos num mesmo presente
Distorcidas pelos vincos das formas onde jazem derretidas
Que pequenas são estas memórias
Que se distinguem nas aparências
nas tonalidades das cores
nas melodias e aromas
Que se singularizam pelos lugares em que estão esculpidas
São pequenas, porém
eliminam todos os outros elementos do momento
O momento que não é o presente destas memórias
é apenas o cenário onde essas assumem o papel principal
São memórias contraditórias aparentemente reconciliadas
Pela contiguidade
Porque cada uma
faz esquecer o incesto entre o mar e a montanha
Porque todas
se encurvam em organismos
decapitados pelo peso das lembranças
secos pela fricção do suceder do tempo
Neste presente
Sob o céu que hesita na cor com que se pinta
Sobre a terra negra e obstinadamente húmida
Nesse intervalo
Brota a memória primordial
em cima do que resta de um animal de pêlo branco puro
como num pretérito original era a inocência do seu pintor
Memória seguinte
A cor menos inocente
confessa a insistência no erro
Revela-se numa oscilação entre a natureza e mecanismos artificiais
entre o vermelho e uma outra cor,
que não encontra tradução em palavras
Ao lado,
Numa árvore genealógica mutilada
sem raízes
e de um ramo só
como que pintada por um aprendiz na arte da poda
Estende-se outra memória
insistindo na aproximação às mais antigas
Dobrada pela indiferença das outras
Ilusão óptica
Jogo de espelhos
Estas memórias lutam pelo afastamento entre si
fogem à terra rastejando em direcção ao céu
Esta triplicação de memórias no presente
nesta tela
Esboça uma vã tentativa de redenção
A última hipótese do pintor narrar as memórias à sua maneira
para parir crença na sua história
para perpetuar uma outra versão dos pretéritos
Este é o momento do pintor
De reconciliação interior
A terapia contra a persistência da verdade
O que ele não sabe é que...
Não se exila as memórias
com quadros fechados em museus
nem se as prende com pontos finais
Não se reinventa as memórias
alterando-lhes as cores e as formas
nem usando sinónimos ou antónimos
As memorias perseguem-nos
Estão cravadas na carne
e quando não houver carne
Ficam a pairar por aí
Em jeito de emboscada
à espera que a alguém as escute e reproduza
à espera de recarnificação
À espera de ti!
sexta-feira, 8 de janeiro de 2010
Uma espécie de recensão crítica
Memória de um Inconformista – Crónicas
Gonzalo Torrente Ballester
[Tradução e notas de António Gonçalves]
Âmbar, Porto, 2006,
467 pp.
Gonzalo Torrente Ballester (1910-1999) é considerado um dos principais intelectuais espanhóis do século XX, cuja obra conta com cerca de meia centena de livros repartidos pelo romance, teatro, ensaio e jornalismo. Qualificado e premiado como um dos melhores escritores espanhóis - o “senhor das palavras”, também foi jornalista e, tal como a certa altura se intitulou, sobretudo, “um excelente professor”.
O seu inconformismo e espírito crítico face aos acontecimentos do seu tempo, nomeadamente, em relação ao regime político, tornaram-no alvo da censura oficial do aparelho franquista em todos estes ofícios. Em 1962, por exemplo, esta postura custou-lhe não só a indiferença da crítica para com a publicação da última parte da sua trilogia Os Prazeres e as Sombras, mas também perdeu o seu lugar de professor na Escola de Guerra Naval e o seu espaço na imprensa e rádio. Somente dois anos depois conseguiu o reingresso no ensino e recuperar o seu espaço na imprensa escrita, altura em que inaugurou a sua presença no jornal Faro de Vigo numa coluna intitulada “A modo”.
Em 1997, César António Molina compilou em Memória de um Inconformista grande parte dos artigos aí publicados, entre Julho de 1964 e o início de 1967, e cuja tradução chegou em 2006 ao mercado português. Esta obra, para além de nos oferecer a oportunidade de (re)visitar o estilo e as ideias de Ballester, tem o mérito de nos fazer recuar até aos anos 60 e de permitir conhecer, recordar e reflectir sobre os temas, as polémicas e os protagonistas que em muito contribuíram para a realidade que vivemos actualmente.
Nestes artigos, sem uma dimensão nem periodicidade regular e pautados por um estilo errante entre a literatura e o comentário jornalístico, o seu autor debruça-se sobre as mais diversas temáticas: sociais; políticas; religiosas; culturais; e etc.. Atento à realidade e aos acontecimentos do seu tempo escreve, sempre sem pudor e sem medo do juízo apaixonado ou do erro pessoal, sobre todos os assuntos, quer os que estuda e conhece, como aqueles em que se sente mais inseguro.
A única regularidade transversal aos diversos artigos é o estilo e os valores que defende. Em cada artigo Ballester revela-se mais do que um homem à frente do seu tempo, ele demonstra ser alguém profundamente comprometido com todas as circunstâncias do época em que viveu. Talvez consciente disto, numa crónica alusiva ao seu primeiro ano como cronista do Faro de Vigo, interroga-se: “Não posso deixar de me assustar e de perguntar a mim próprio se em tanta prosa haverá algo de válido, ou de autêntico, ou de permanente (…)”.
Volvidos 40 anos, o leitor poderá responder seguramente que sim. Não obstante algumas conclusões que se revelaram falhadas e o facto das personagens e os contornos dos assuntos serem presentemente outros, a sua prosa, a atitude e os valores que defendeu mantêm uma surpreendente actualidade. Hoje, como antes, é necessário manter o inconformismo e o espírito crítico construtivista típico em Ballester perante a permanência dos mesmos problemas de sempre: guerras; subsistência de regimes não-democráticos; discriminação e segregação racial e sexual; a falta de renovação da Igreja e dos seus eclesiásticos; a desvalorização da cultura e do ensino; o alargamento da sociedade de consumo; os erros da politica externa dos EUA; o desrespeito pelas diferenças; e a urgência de convivência pacifica.
O seu inconformismo crítico face a estes e outros problemas resultou em numerosas cartas ao director do jornal e em várias contestações públicas. No entanto, sempre se revelou um espírito livre e obstinado, e várias vezes o sublinhou cintando o verso de Quevedo “Não me calo...”.
A publicação desta obra é a prova de que ainda não se calou.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
Evasões (IV)
07/09/2007
University of Sussex, Brighton, England
No cimo de umas escadas, acompanhado de duas Carlsberg enquanto lamento a perda de uma budweiser
Ouvi um disparo
e não sinto a morte
Imóvel,
vejo pássaros a levantar voo
esquilos em busca de refúgio
pessoas perdidas a correr
Sinto o universo a tropeçar
E a morte?
Nada,
Nenhum rio a correr de dentro de mim
O corpo ainda de pé...
Talvez a morte seja isto
Sentir e ver tudo em movimento
e nós adiados
Enfim, a mesma coisa que a vida
mas sem pessoas a correr
fugas de esquilos
nem pássaros a voar...
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
Abreviaturas do Agora
20/11/2008
Hoje tive um dia muito ocupado
a enfrentar as leis da natureza
a subverter as regras socais
a acelerar a minha mortalidade
Muitas vezes, recapitular o passado
a história dos momentos
os gestos dos feitos
as letras dos ditos
Basta para ridicularizar o anjo vermelho
Basta para rir na cara da morte
Outras vezes, como hoje
É preciso destruir o Presente
apertá-lo com as duas mãos
senti-lo contorcer-se debaixo da força dos dedos
incapaz de gritar
incapaz de lutar
Este Presente é demasiado incompetente para existir
No fim do dia, daqui a pouco
quando todos dormirem
Numa das cavidades de outro presente,
pensarei no desperdício que é abreviar o agora
Hoje tive um dia muito ocupado
a enfrentar as leis da natureza
a subverter as regras socais
a acelerar a minha mortalidade
Muitas vezes, recapitular o passado
a história dos momentos
os gestos dos feitos
as letras dos ditos
Basta para ridicularizar o anjo vermelho
Basta para rir na cara da morte
Outras vezes, como hoje
É preciso destruir o Presente
apertá-lo com as duas mãos
senti-lo contorcer-se debaixo da força dos dedos
incapaz de gritar
incapaz de lutar
Este Presente é demasiado incompetente para existir
No fim do dia, daqui a pouco
quando todos dormirem
Numa das cavidades de outro presente,
pensarei no desperdício que é abreviar o agora
domingo, 3 de janeiro de 2010
Subscrever:
Mensagens (Atom)